Quando recebi pela primeira vez o texto que circula pela internet, via e-mail, com o título de “Vinícius era F_ _ _” (o título vem assim, como se fosse um jogo de forca), lembrei-me de que já havia lido aquilo antes, atribuído a outro autor.
Não vou entrar aqui em considerações sobre o estranho processo que transforma um substantivo tido como de baixo calão em adjetivo elogioso, nem no que faz com que palavras que designam processos vitais ou partes do corpo de seres vivos passem a ser consideradas ofensivas.
O assunto, aqui, é a migração da autoria popularmente divulgada de algum texto, seja ele bom ou ruim. A crônica de que falo hoje, tendo a amizade como tema, é muito bem escrita – diferentemente de outros textos que já foram abordados nesta seção.
Trata-se de uma crônica objetiva, terna sem ser piegas, do tipo que agrada a pessoas sensatas – e do tipo que um poeta não escreveria. O título que lhe dão, na net, varia. Pode ser “Amigos”, “Meus Amigos”, ou “Meus Secretos Amigos”. O mais provável é que este último seja o título original.
Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles.
A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, eis que permite que o objeto dela se divida em outros afetos, enquanto o amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade. E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos! Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências...
A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem. Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida. Mas, porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.
Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos. Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não declare e não os procure. E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.
Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado. Se todos eles morrerem, eu desabo! Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles. E me envergonho, porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem estar. Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.
Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles. Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer...
Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus amigos!
A gente não faz amigos, reconhece-os.
O jornal Zero Hora, de Porto Alegre, na edição de 19 de junho de 2002, diz: “O colunista Paulo Sant’Ana recebeu esse e-mail do jornalista Emanuel Mattos no dia de seu aniversário e, para seu espanto, identificou que o texto, assinado por Vinícius de Moraes, é de sua autoria. Surpreso, imediatamente ligou e desfez a confusão. A criação de Sant’Ana já deve ter circulado por muitas caixas de mensagens com a assinatura de Vinícius, sem que ninguém soubesse da troca de autor. Somente, é claro, o próprio Sant’Ana.”
Sim: o próprio Santana – e também qualquer pessoa minimamente dotada de espírito crítico e que conheça algo de Vinícius. Qualquer coisa! Não é preciso ser um grande estudioso de sua obra. A ausência do tom lírico que permeia todos os seus escritos deveria bastar para acender uma luz de alerta no olho do leitor.
Alguém, em algum momento, decidiu que o texto seria muito mais “significativo” se fosse assinado por Vinícius de Moraes. O espantoso é que outra pessoa o receba e engula essa autoria sem questioná-la. O Vinícius poeta era inquietante e derramado. Quando falava aos amigos, dizia, por exemplo:
Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo
E estão me despertando de noite.
Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena
Eles são maduros e úmidos e inquietos
E sabem tirar a volúpia de todos os frios.
Meus amigos, meus irmãos, e vós que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos.
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braços da mulher morena
Eles são lassos, ficam estendidos imóveis ao longo de mim
São como raízes recendendo resina fresca
São como dois silêncios que me paralisam.
Aventureira do Rio da Vida, compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a água escorrendo fria.
Branca avozinha dos caminhos, reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena está encurvando os meus ombros
E está trazendo tosse má para o meu peito.
Meus amigos, meus irmãos, e vós todos que guardais ainda meus últimos [ cantos
Dai morte cruel à mulher morena! [1]
Belíssimo, mas não satisfaz à sede de sensatez do leitor médio, que quer coisas pragmáticas, com as quais se identifique; algo que ele sinta que poderia ter escrito, se soubesse escrever. Algo que contenha uma “lição de vida”, palavras coerentes e tranqüilizadoras. E Vinícius é sempre delirante; magnificamente delirante antes de se tornar letrista de MPB – e delirante com um lirismo populista, depois. Eis Vinícius, quando escrevia em prosa sobre amizade:
PROCURA-SE UM AMIGO
Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimento, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja de todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.
Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grande chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.
Aqui, Vinícius mostra a mesma face que aparece na letra de Minha Namorada: faz uma lista das exigências a que alguém deve atender para candidatar-se a amigo/namorada, usando uma linguagem bem característica da bossa-nova, uma compilação de coisas vagamente associadas a poesia no imaginário popular – chuva, lua, brisa, madrugada. Não é mais o poeta vigoroso assombrado pela mulher morena, é o poetinha mimado pelas multidões. (Em troca das muitas qualidades que o amigo ou a namorada deveriam ter, nada é oferecido, mas isto não vem ao caso, aqui.).
No dia seguinte ao da publicação da nota reproduzida acima, a seção de cartas do jornal Zero Hora trouxe uma mensagem de um leitor que afirmava que a crônica sobre amizade é de Garth Henrichs, e não de Paulo Sant’Ana. E quem seria Garth Henrichs? Segundo o leitor, [2] “um escritor existencialista.” Quando recebi o e-mail pela primeira vez, esse era, de fato, o nome que aparecia como autor.
Procurando esse texto em inglês, não o encontrei, a não ser em traduções macarrônicas muito engraçadas, cuja explicação deve ser a de que alguém, no Brasil, ouviu dizer que aquilo era de um autor americano e submeteu o texto ao terror que são os tradutores automáticos, para poder apresentá-lo “no original”. Como ilustração do que digo, vai um trecho dessa versão em “inglês”: “The friendship is a nobler feeling than the love, here is that allows that the object of her becomes separated in other affections; while the love has intrinsic the jealousy, that doesn't admit the rivalry. I could support, although not without pain, that you had all died mine loves, but he/she would go mad if they died all mine friends!”[3]
A tradução é cômica, mas fica como prova de que, ainda que se possa encontrar esse texto com palavras que pertençam à língua inglesa, ele com certeza não foi escrito originalmente em inglês. E talvez Garth Henrichs tenha sido, de fato, um autor existencialista, mas não consegui descobrir nenhum livro ou artigo escrito por ele. Caso alguém encontre alguma referência confiável, agradeço o envio. De sua autoria, tudo que encontrei foram duas frases que aparecem freqüentemente como citações: “The person who is waiting for something to turn up might start with their shirt sleeves." e “One does not make friends, one recognizes them.”. A primeira diz que quem está esperando alguma coisa boa acontecer pode começar por arregaçar as mangas (e pôr mãos à obra, supõe-se). Há na frase um trocadilho intraduzível, mas o sentido é esse. A segunda tem exatamente o sentido da frase final do texto atribuído a Vinícius: “A gente não faz amigos, reconhece-os.”.
Imagino, então, que tenha acontecido aqui o mesmo que aconteceu com os textos atribuídos a Clarice ou Drummond: algo que apenas terminava com uma citação desses autores acaba sendo impingido a eles na totalidade. Paulo Sant’Ana deve ter encerrado a crônica citando Garth Henrichs, que alguém concluiu ser o autor do texto todo. Esse engano é compreensível.
Mas a única explicação para alguém dizer que Vinícius de Moraes o escreveu é desonestidade intelectual – sabe-se lá com que fim!
Fonte: http://www.blassoc.com.br/bettyvidigaltextovm.htm
http://ditadosereflexoes.blogspot.com.br/2013/08/amigos-para-sempre.html
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